
Ao partir, Heleusa Figueira Câmara (14 de maio de 1944 – 6 de janeiro de 2019) deixou um exemplo de produtividade em favor do ser humano – os que se sentem soltos e os que se sabem presos. É admirável a doação de Heleusa na tarefa, missão, prazer de legar uma humanidade melhor ao mundo. E ela fez isso com sensibilidade e arte. Humaníssima sensibilidade. A arte do amor e a arte da literatura, do ler e do ensinar a ler. A leitura como liberdade e crescimento. O Proler e a ação que desenvolvia junto a detentos são exemplos impactantes da sua entrega. A percepção desse legado mitiga a tristeza pela sua partida.
Em seu tempo entre nós, Heleusa partilhou o que amealhou de experiência em quase 75 anos de intensa vida. A meu entender, ela estava avante no tempo. Desde seu livro de contos Mulheres Acorrentadas, de 1982, Heleusa já deixava isso claro. Ali, percebia-se uma escritora indisposta com a dominação machista, com os grilhões que a sociedade impunha à mulher – o que, infelizmente, não mudou quase nada e há, agora mesmo, quem sonhe com uma restauração daquilo contra o que, como se via, Heleusa Câmara se insurgia, na forma de sua prosa profundamente poética, como no visceral 40 Graus de Outono (Massao Ohno Editor, 1991), e na sua atitude, altiva e firme, sem acinzetar a suavidade que seu sincero olhar azul brilhante e seu falar vivaz e gentil tornaram marca de seu ser.
Vamos sentir falta de Heleusa nesses tempos de água turva que o Brasil vislumbra.
Já se disse muito dela nos obituários da imprensa e nas homenagens de amigos e admiradores nos blogs e nas redes sociais. Eu digo que a mim a morte de Heleusa também entristece, a gente nunca pensa que as pessoas que (nos) fazem o bem vão morrer, deseja que elas sejam eternas, para que, depois de nós, quem venha também possa desfrutar do seu bem-fazer. Entretanto, eu tenho a alegria de poder dizer que vivi em uma parte do tempo em que Heleusa viveu. E que, pelo que ela fez, tornou-se, sim, eterna.
Abaixo, seguem trechos retirados de seu livro 40 Graus de Outono, obra recebida com entusiasmo pelo mundo literário e com imenso orgulho pelos seus conterrâneos.
“Relendo cartas, vem-me a vontade de falar dos lindos atos: o teatro resplende, há toda uma glória. Não é um sorrir nem um fechar de olhos; é todo o apanágio de uma conquista. Não há mutilados, é rendição. Na taça da tua vitória, lábios estranhos não pousarão. Não há mais veneno. Os provadores morreram. Agora, tu viverás mesmo de longe.
À tua saúde! Bebamos.
Domino (amanhecendo) – Detesto o imutável. O universo é movimento, criação constante, e é dever estar-se nas mutações… metamorfoses que faremos juntos… Ser pedra, poeira cósmica, crisálida, borboleta, cogumelo, bebê rechonchudo, folha caída, bicho-de-pé, madeira serrada, excremento, sais minerais… – o sempre eterno – O renovar. Como estabelecer normas rígidas? Nunca mais tocar os sinos, ou simplesmente dizer: “Boa noite, senhora”.
Não há distância que o som da flauta não alcance. Não viajarei. Estarei em todas as notas, é só ouvir.
Fantástico domingo – Noite. No alto, sob os braços do Cristo, penso nas casas de todos. Milhares de luzes mercúrio, neon, candeeiros, algumas velas, poucos archotes. Paira-se acima da luminosidade e à luz do luar ama-se. Corpos apaixonados refulgem. Coisas do amor.
O sono chama meu corpo deixando-o inquieto. Não vou dormir, não quero! Dirão: enlouquecida conversa, mas eu ovacionarei de pé estes desejos. Todos estão surdos e mortos. Aguardo o despertar dos móveis desta loca… O sino tocou. A música triste não me deixa gris. Amo. Há um pasmar no corpo. A felicidade não pode ser recusada e sei onde ela mora. Hei de ter coragem. Agora, já posso dormir, quero ir para os meus sonhos. – Boa noite! Estou em floração, num novo mundo nascente.
Falo em transladações e não sei onde vou. Sei que parto, mesmo partindo a fortaleza reduto. Mentira de herói mudo. Há uma voz pequenina dizendo: boa noite! Mais uma vez, parto-me. Que dor! Difícil divisão. Há sempre restos…
Quando o amor verão tomou conta da fêmea outono não se poderia pensar que a vida teria a duração de um arco-íris. A aquarela das estações tinha sete cores, mas não tinha sete vidas, e com a chuva fina e intermitente passou a desbotar. Em oposição, o sol chegante queimou o tênue invólucro e crisálida abriu os olhos nervosa e constatou perplexa que não seria nunca mais uma borboleta.
Quando os pés esfarelaram sua face de louça, bolhas suspirantes subiram no ar. A bailarina não precisava mais de pernas e de corpo. Era a nota terna de uma sinfonia despontada. As suas cinzas foram depositadas um caleidoscópio e, na multiplicação infinita de cores e formas, formou um vitraux de uma igreja que espera o regresso do amor.
As crianças chegaram e gritaram: Quem subir por último na duna é um bobão. Escorregaram e deixaram a duna parecida com uma baleia. Que linda!, disse a menininha; “é minha”. É minha, disseram os outros. Os pés caminharam de novo pelo seu corpo e a tornaram uma moça mordida. É minha, eu vi primeiro. Os pezinhos foram embora. A noite contara que o vento vira suas formas e ficara apaixonado. Pretendia raptá-la para também saírem num papel jornal.
De manhãzinha o Simum a levou para fora do Saara. Era tão bom ser carregada. Olhou para o arco-íris e teve a certeza de que, quando estivesse espalhada pela terra, poderia dar gostosas escorregadas em suas sete cores. A renda da saia de tule bordada de strass, e enviada com os cumprimentos do orvalho, foi dobrada e escondida no coração. Quem sabe!?…
Senhoras e senhores, o espetáculo continua.”
“Heleusa, baiana Heleusa, você mergulha e vem à tona. Nada mais um pouco. Sonda os abismos do ser. Dialoga com o coração do homem. Já dissera o poeta, e foi Virgílio – Improbe amor, quidnon mortalia pectoracoagis… Cruel amor, a quanto não obrigas os corações dos mortais. Você compreende muito bem essas coisas delicadas. Você sente as realidade humanas. Você tem sensibilidade demais, ó Heleusa, fina Heleusa, tão sagaz Heleusa. Você ama a vida. E sua literatura nos revela, nos transmite o seu amor. Que grande amorosa você é… […] Silêncio. Você dialoga com Deus. A amplidão do seu universo me assusta. Como você sabe o humano. Sim, o humano não tem mais segredo para você. […] Você conquista para sempre os nossos corações machucados, ó Heleusa, mão firme, criadora indômita, super lúcida e insaciável.” – Antônio Carlos Villaça, 1990, na apresentação do livro 40 Graus de Outono. Villaça (Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1928 — 29 de maio de 2005) foi um escritor, jornalista, conferencista e tradutor, reconhecido como um dos mais importantes memorialistas em sua área no Brasil. Recebeu em 2001, pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras
Lamentável perda
Giorlando!!! As suas palavras foram um presente nessa manhã de tanta falta! Compartilho de sua reverência em cada lembrança. Obrigada por trazer o livro… “A bailarina não precisava mais de pernas e de corpo”… Que espetáculo foi a sua vida por todas as impressões que ela deixou em nós. Gratidão pela tamanha sensibilidade, a minha mãe (Edilce Figueira) perguntou quem escreveu, admirada, agradecida, entre muitas lágrimas.
Valéria, dê meu abraço na sua mãe. A perda de Heleusa marca a todos nós. Resta valorizar seu legado. E viver, nós mesmos, com alegria e fé. Estou honrado com seu comentário. Desejo paz e amor a todos e todas entre os seus. Abraço.
Valéria, a perda de Heleusa marca a todos nós. Eu fiquei muito triste, mas achei na obra dela um jeito de agradecer o que ela deixou para nós. Resta valorizar seu legado. Dê meu abraço na sua mãe. Seu comentário me deixa honrado e emocionado. Obrigado. Desejo que você tenha muitos motivos para continuar sorrindo. Paz e amor. Abraço.